domingo, 2 de agosto de 2009

Capítulo 7 - O Império do Samba

Segundo semestre de 1997. Até então não rolava quase nada de samba no Villaggio, até porque nosso conhecimento na área era reduzido. No meu caso, se restringia a uma certa memória afetiva, recordações de rádios AM cariocas que pegavam em São Sebastião na década de 1970, tipo Tupi e Mundial; Cristina Buarque estreando com “Quantas Lágrimas”, Beth Carvalho com “1800 Colinas”, Roberto Ribeiro com “Estrela de Madureira”, Clara Nunes e sua fase candomblé e, mais pra trás ainda, alguns discos do Martinho que meu pai tinha, com as clássicas “Casa de Bamba” e “Pequeno Burguês”, entre outras. Lembrava também de alguns sambas-enredo famosos, como “Macunaíma” e “Os Sertões”. Mas tudo isso era coisa da minha infância e adolescência; na juventude ouvi de tudo, menos samba. A Rozana também conhecia pouco sobre o assunto, estávamos no mesmo nível de desinformação.

Um belo dia li na Folha que o (hoje extinto) bar Boca da Noite iria trazer "um tal de" Nelson Sargento, veterano compositor da Mangueira, que na ocasião era tema de um curta-metragem recém-premiado no Festival de Gramado. Curioso que sou, na primeira oportunidade perguntei ao seu proprietário, meu amigo e sambista Wilson Sucena, como tinha sido. Razoável de público, disse ele, mas deu mídia. E Nelson Sargento era Nelson Sargento. Ah, é?...OK, informação registrada.

Na mesma época, um carioca da gema chamado João Paulo, marido de outra carioca da gemíssima, a Cidinha - hoje sócios da casa de samba paulistana Traço de União -, fazia regularmente seu happy-hour no Villaggio. Numa dessas oportunidades, comentou que era ligado ao pessoal do samba do Rio, que já havia sido dono de bar lá, etc. e tal. Mais adiante, vendo nossa vocação para produtores de show, perguntou se não havia interesse em trazer novamente o Nelson pra São Paulo, pois o mesmo era amigo pessoal deles e a hospedagem estaria garantida. Eles também me ajudariam a montar um grupo para acompanhá-lo, coisa e tal. Enfim, fariam todo o meio-de-campo necessário.

Por uma dessas coincidências do destino, na mesma época, um dos filhos do saudoso Zé Ketti nos procurou para tentar agendar um show do pai, que já não andava nada bem de saúde, mas precisava – coisas do Brasil – trabalhar para sobreviver.

Bingo. Tava na cara que a oportunidade era única. Marcamos as duas apresentações com apenas duas semanas de intervalo, e deu certo: o Guia da Folha deu destaque com foto, comentários elogiosos e o escambau. Sucesso de crítica e de público.


A partir dali começamos nossa escalada do samba, praticamente do zero. Por alguma razão inexplicável, havia um vácuo no "show-business sambístico". Fora uma ou outra roda em bares, uma ou outra apresentação esporádica em Sescs, não existia um circuito regular, uma agenda com os grandes mestres em São Paulo. E, por incrível que pareça, no Rio também não; se não me engano, só rolava show num bar em São Cristóvão chamado Casa da Mãe Joana, no Candongueiro em Niterói (uma vez por mês...) e nas rodas esporádicas do Bip-Bip, em Copacabana.

Os produtores não se conheciam, a internet ainda estava no começo, a mídia não tinha muito o que falar. Os mestres passavam por dificuldades, não tinham onde trabalhar.

A gente percebeu isso e resolveu criar um projeto de samba, que no início iria se chamar "Mitos do Samba", mas que no fim ficou sem nome mesmo.

Luiz Carlos da Vila, mesmo vencedor no Carnaval com a Vila Isabel, dois discos lançados pela Velas (na época, ainda idealista) e matéria na Veja (graças a um jornalista boêmio que trabalhava lá e frequentou o Villaggio por muito tempo, o hoje sumido Júlio César Barros), não era conhecido por aqui. Quando ele, de passagem, deu algumas canjas com o pessoal do choro no domingo, é que a gente percebeu a sua importância e talento. Com o sucesso dos dois primeiros shows, arriscamos o terceiro, em janeiro de 1998: ele mesmo, Luiz Carlos da Vila. Alguém da Comunidade Negra resolveu aproveitar a data pra entregar uma medalha a ele, e nessa noite o Villaggio simplesmente bateu o recorde de público da sua história. Lembro-me bem, a casa parecia uma panela de pressão, uma verdadeira epifania! Depois disso, ninguém nos segurou mais. Na seqüência, apareceu o Carmo, hoje produtor conhecido, com o material do Nei Lopes e do Noca da Portela, querendo agendá-los. Nessa época eu, já amigo do Moacyr Luz e produzindo seu antológico CD Mandingueiro (Dablíú, 1998), volta e meia ia ao Rio e me hospedava na sua casa, recebendo preciosas dicas de “quem era quem” nos bastidores do samba carioca, nas rodas e botequins. Com isso, nos sentimos seguros pra marcar o Nei - em maio, e o Noca - em julho. Mais sucesso e casa lotada. Em maio também trouxemos o Walter Alfaiate, que havia sido contratado, na verdade, pelo Sesc Ipiranga (uma batalha...), mas lá só deu 30 pessoas - e no Villaggio voltou gente... Começamos a ganhar prestígio e chamar a atenção da imprensa. Em média, duas vezes por mês a gente trazia alguém do Rio – de ônibus, diga-se, com hospedagem em hotéis pra lá de modestos. Como a coisa estava parada por lá, o sambista que vinha a SP, ao retornar, comentava com outro, e - de repente - estávamos sendo procurados por todos. Não existia a Lapa carioca como é hoje, apenas um ou outro barzinho. Lembro-me do Semente (cuja "crooner" era a hoje a estrela Teresa Cristina) e do Coisa da Antiga, misto de bar e antiquário; mas tudo muito devagar ainda.

Certo dia, buscando nomes, lembrei-me de "um tal de" Monarco (vejam só...), guardado numa gaveta da minha memória; a Rô foi atrás e descobriu o homem, que não pisava em São Paulo havia sete anos. Trouxemos a fera, montamos um grupo com a ajuda do Carlinhos do Cavaco e a Folha deu matéria com foto (aliás, bem antiga, tirada de arquivo, já que imagem recente não existia) assinada pelo respeitado crítico musical Pedro Alexandre Sanches, o que despertou a curiosidade geral. Outra loucura, duas noites de casa lotadaça, e de emoções à flor da pele diante das histórias contadas, ao vivo e em cores, pelo mitológico líder da Velha Guarda da Portela. Numa dessas “montagens de banda”, buscando viabilizar financeiramente o projeto, não me lembro quem (acho que o Carmo) sugeriu um grupo novo, de uns meninos novinhos, ainda na base do guaraná - dois irmãos negros e três irmãos brancos, talentosíssimos - que se conheceram no Boca da Noite e ainda se chamavam grupo Café com Leite. Topamos, eles tocaram com o Noca e foram muito bem. Ainda completamente desconhecidos, aceitaram nosso cachê reduzido, certamente sacando que ali estava seu futuro. Na mosca: aos poucos, se tornaram o “grupo acompanhante oficial” do Villaggio, onde tocaram por quase cinco anos, direto. A cada show, a cada noite, eu chamava um-a-um, antes do artista principal, e falava seus nomes até que o publico os decorasse: “Magno, Maurílio, Ivison, Éverson e Vitor Hugo!”. Na seqüência, passaram a acompanhar todos os mestres em shows em outros locais, principalmente Sescs. Hoje esses eternos (pra nós) meninos são conhecidos no Brasil inteiro como Quinteto em Branco e Preto. Em setembro, ainda de 98, com uma ajuda providencial do Moacyr Luz, tivemos a sorte grande de receber em nosso palco a maravilhosa Dona Ivone Lara, o que nos obrigou a abrir as portas da casa e pôr gente assistindo na mesas da calçada, tamanha a quantidade de público. Mais um grande salto. E, assim, fomos trazendo quase todo mundo do Rio: Délcio Carvalho, Mauro Diniz, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Wilson Moreira, Jair do Cavaquinho, Wilson das Neves (seu primeiro show- solo), Guilherme de Brito - há 10 anos sem pisar aqui - e o inédito Casquinha da Portela (cujos discos eu produzi com o Moacyr Luz na então Lua Discos), Dorina, Zé Luiz do Império, David do Pandeiro, Jair do Cavaquinho, Xangô da Mangueira (outro então desaparecido da capital), Camunguelo (há 18 anos sem vir a SP). Mais no final, novidades como Serginho Meriti, Bandeira Brasil e Tantinho da Mangueira. Luiz Carlos (que ganhou o apelido de Luiz Carlos "do Villaggio") e Moacyr Luz voltaram várias vezes; Nelson Sargento e Walter Alfaiate também; Monarco, idem. Sugestão da querida Roberta Valente, lançamos a Tia Surica como artista-solo (nem no Rio isso tinha acontecido) e, no embalo, também outra pastora da Portela, Áurea Maria. De São Paulo, trouxemos Germano Mathias, Luizinho SP, Carlinhos do Cavaco, Nei Silva (o homem da Aba do meu Chapéu), Paqüera, Chapinha e tantos outros. E tome matéria no Estadão, na Folha, destaque na Vejinha. O Villaggio brilhava!

Na esteira do sucesso do Quinteto, vários novos grupos começaram a nos procurar, prontamente atendidos: Produto do Morro, Samba Raro, Samba Autêntico, Filhos de São Mateus, Passado de Glória, enfim, tantos que nem dá pra lembrar. Todos eles passaram a existir graças ao projeto de samba do Villaggio Café.

Outro fato importante a ser registrado: na apertada platéia, com mesa reservada de véspera, sem perceber estávamos formando um público pra lá de seleto, sério formador de opinião. Ao lado de jornalistas, produtores, outros sambistas e simples fãs, sentavam-se os hoje donos de renomadas casas de samba da paulicéia: Germano Fehr, João Paulo e Cidinha do Traço de União; Cícero, do Salve Simpatia e depois Bar Samba; Fernando Szegeri, do Ó do Borogodó; Paqüera e Edvaldo do bar hoje ao lado da praça Roosevelt, que não sei o nome (absolutamente lotado aos sábados). Na época, eram apenas - assíduos - clientes do Villaggio. Cada um formou uma idéia na cabeça e arriscou voar “solo”. Daí, sem dúvida, nasceu o atual “boom” de samba em São Paulo: das casas noturnas abertas por nossos clientes. E quem não concordar, que prove o contrário. No Villaggio surgiu, também o projeto Samba da Vela, do encontro do Quinteto com o Paqüera, Chapinha e Edvaldo Galdino, que é forte até hoje, e conhecido em todo o Brasil.

E mais: conforme relatos vindos lá da Baía da Guanabara, no calor da “onda” e motivado pelo diz-que-diz dos sambistas, na mesma época abriu no Rio o bar “Carioca da Gema” - que impulsionou a nova Lapa de lá. Ora, se em São Paulo o samba estava dando dinheiro, porque no Rio - seu berço - não? Depois dele, dezenas de casas foram inauguradas e hoje o gênero domina – e ilumina, como nunca, a noite carioca.

Em março de 1999, eu a Rô fomos co-produtores do espetáculo “Esquina Carioca”, realizado pelo bar Pirajá e pela Brahma e que botou 1.200 pessoas no Tom Brasil. No palco, Moacyr Luz, Luiz Carlos da Vila, Walter Alfaiate, Dona Ivone, Beth Carvalho e João Nogueira - na sua despedida. O “Esquina”, nas suas duas primeiras edições, ajudou a ferver o caldo de vez e colocar o samba “de raiz” de volta ao seu lugar: o Olimpo.

Sites como o “Samba-Choro” (que também começou em 1997) espalhavam as notícias pela Net e “linkavam”, pela primeira vez, as pessoas no Brasil inteiro. O mundo estava mudando e nada mais seria como antes. Melhor pra gente: na contramão do pagodão mauriçola, de coisas como Negritude Jr. e Só Pra Contrariar em seu auge, o “tsunami do samba” não tinha mais como ser contido.

Foi uma época maravilhosa e inesquecível, que mudou a vida de muita gente. Hoje, no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis, Campinas, em dezenas de grandes cidades existem locais e projetos de samba, e, especialmente aqui na paulicéia, a coisa bombou. Mas, paradoxalmente, com essa explosão toda, depois de quase sete anos de trabalho incessante, nosso projeto começou a perder fôlego. O público - por uma curiosidade natural - passou a procurar as novas casas, maiores e mais - digamos assim - “dançantes”, em bairros da moda. Os sambistas – diante da nova realidade do mercado - deixaram de topar nossas modestas condições de infra-estrutura e, claro, financeiras. A mídia começou a dar seus espaços não só para as casas maiores, mas também para a rede Sesc, que começava a se ampliar fortemente e - evidente - não podia ficar de fora da onda. E tome samba em Sescs, teatros, Comunidade da Vela, parques, ruas. Tudo que era lugar passou a ter pandeiro, surdo e tamborim.

Com a sensação do dever cumprido e, ao mesmo tempo vendo o público se dispersar, aos poucos fomos perdendo o interesse e a motivação, e decidimos reduzir paulatinamente as atrações do gênero, até chegar praticamente a zero, como no início. Não valia a pena insistir, bancar shows com casa quase vazia, já que a galera, de fato, queria se expandir para além do nosso pequeno espaço.

Felizmente, nesses anos, não deixamos o bar se transformar num reduto de samba, o que talvez fosse o nosso fim. Prudentes, continuamos com os outros estilos nos demais dias e mantivemos nossos contatos com o meio em geral. A casa sempre foi de “música brasileira”, em todas as suas vertentes, e não perdeu essa cara, até porque eu e a Rozana gostamos dos demais estilos com a mesma intensidade. Sendo música boa - e brasileira - estamos dentro.

Hoje, no Villaggio, são raras as apresentações de samba. Volta e meia somos procurados por saudosistas - sambistas e produtores que se queixam de que, apesar da tal explosão, o foco hoje é o puro entretenimento, nada de papo cultural. Samba virou balada; o espaços são grandes, mas o público não se interessa pelos artistas, quer mais é saber de dançar, beber e paquerar. No Villaggio nunca foi assim, dizem. E a gente concorda. Lá o público bebia - e muito - mas sentadinho. Aplaudia após cada música, cantava junto, se emocionava, reverenciava os mestres, elegia seus ídolos, comprava CDs. Aprendia sambas novos e relembrava os antigos.

Tudo mudou. A massificação, pra variar, matou a espontaneidade, cerceou o talento, calou o sambista legítimo. Nos grandes palcos, tanto faz pra moçada se está o genial Luiz Carlos da Vila, o Noca ou o Zé da Esquina. O que menos importa é o samba ou o seu compositor.

Pra piorar o quadro, alguns dos grandes mestres compositores já nos deixaram: Zé Kétti, Guilherme de Brito, Argemiro, Jair do Cavaquinho, João Nogueira. E, salvo um Moacyr Luz aqui ou um Luiz Carlos ali - nem tão jovens assim -, e promessas como Wanderley Monteiro, Marquinhos de Oswaldo Cruz e Bira da Vila, a necessária renovação ainda não veio. E, pelo que se vê por aí, está difícil de vir.

De qualquer forma, a história está escrita: o Villaggio Café deu samba, sim senhor! E seremos felizes para sempre - ponto final.

Nesses anos todos nem tudo foi batucada. Tem mais história, claro; mas isso fica pro próximo capítulo...

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